O final de semana foi dedicado a assistir a dois documentários que pautaram muitas conversas entre colegas e amigos nas redes sociais (ironia…). Gastei algumas horas vendo The cleaners, um filme Alemanha/Brasil, de 2018, dirigido por Hans Block e Moritz Riesewieck (achei no Now), e The social dilemma (traduzido ao português como O dilema das redes), Estados Unidos, de 2020, dirigido por Jeff Orlowski (pela Netflix).
Meu interesse era bem mais do que entretenimento; tem a ver com meus interesses de trabalho e pesquisa há tempos. Assistir aos documentários um atrás do outro serviu um pouco para compará-los, mas também manteve um clima de mal-estar que eu nem supunha antes de ver.
The cleaners foi indicação do meu amigo Carlos d’Andréa (UFMG), depois que conversamos sobre uma matéria jornalística para a qual ele foi fonte. Gosto da perspectiva mais humanizada dele, que considera que reagimos, sim, que as coisas não são assim tão determinadas e determinísticas. Comentei com d’Andréa que a discussão se parece muito com outra, bem mais antiga, que polariza duas concepções de leitura e de leitor: passivo e ativo. Ou somos considerados/as vítimas, reféns, aqueles que não reagem à manipulação; ou bem somos aqueles capazes de reagir, de engenhar táticas e estratégias que nos emancipam, na melhor hipótese, ou que nos desenredam (literalmente), em hipótese mais tímida. Meu amigo fala em “usos táticos” das redes, esses que as pessoas (sempre elas, afinal) aprendem a “engambelar” o que as quer prender, oprimir, o que seja.
The social dilemma causou burburinho. Vi gente falando em encerrar suas contas em redes. O documentário, de estética multimodalmente mais viva e clara, apresenta depoimentos de homens e mulheres que trabalharam e trabalham em empresas como Google, Twitter, Pinterest, Instagram, Facebook, etc. e sabem como essas redes são pensadas por dentro, quais são as estratégias para comprar e vender nossa atenção, como fazer a conexão mais forte entre consumo e manipulação e assim vai. É talvez um dos exemplos de trabalho que mais evidências oferece sobre o link poderoso entre engenharias, psicologia, linguagem e ciências sociais em geral. Essa divisão besta que costumamos fazer entre áreas, inclusive rebaixando algumas delas, fica ali mais boba do que nunca.
Em The cleaners, o formato é semelhante, o visual é bem mais lúgubre, mas os depoimentos de executivos/as se misturam aos de funcionários/as nas Filipinas, contratados/as para filtrar o que vemos nas redes sociais, inclusive no YouTube. Quem controla a imensidão de vídeos e fotos que são postados, diariamente? Algoritmos e robôs não dão conta disso por razões semânticas. E estão a postos pessoas que assistem a coisas inomináveis, à taxa de 25 mil/dia, deletando ou ignorando tudo o que é postado por gente do mundo inteiro (uma especialista entrevistada comenta: quando você chama todo mundo a publicar… tem de responder às consequências). Isso inclui o trabalho invisível daqueles/as que decidem se transmissões ao vivo devem ser interrompidas, o que quer dizer filtrar suicídios, decapitações, estupros, etc.
As redes se perguntam se as estratégias para fisgar o/a usuário/a fazem bem a ele/ela? Eis uma questão proposta por The social dilemma. Atuar nessas empresas tem a ver com ética, com direitos humanos, com censura, com edição, com educação, etc. Que responsabilidades essas empresas de tecnologia têm sobre o que vemos, consumimos, lemos? E sobre notícias falsas, genocídios e eleições presidenciais que alteram as configurações mundiais? Não são empresas de mídia e jornalismo… são empresas de tecnologia, que é o que alegam sempre que são judicialmente questionadas ou processadas.
Os dois documentários são pesados, difíceis, graves, com maior peso para The cleaners, com cenas violentas. A discussão leva a conclusões pessimistas em ambos, a meu ver. The social dilemma ainda oferece “dicas”, ao final, sobre como minimizar os efeitos do vício que as redes podem causar. Não fez diferença demais em minha vida porque pratico algumas daquelas dicas faz tempo: jamais durmo com celular no quarto, notificações desligadas, etc. Mas meu filho… ah, meu filho… é certamente uma vítima. Como transformá-lo em alguém mais diligente, consciente e reativo? Não falaram nisso quando inventaram o tal “nativo digital”? Demos bobeira, hein?
Bom, estou pensando na perspectiva emancipatória, essa que considera a reação humana possível, o/a leitor/a ativo, perspicaz, tão inteligente quanto as redes. Mas que papel temos, professores/as e escolas, nessa cena? Para mim, temos um papel importante. Uma abordagem de letramentos pode ser útil, se incluirmos na paisagem as questões digitais. E não apenas essa que diz respeito a recursos, máquinas, ferramentas, mas essa mais profunda, que diz respeito às práticas, ao que aprendemos e fazemos, a como passamos a nos comunicar (impelidos e compelidos por templates prontos), a como vemos o mundo e as outras pessoas, em interlocução ou em constante choque. Precisamos ser espertos/expertos quanto a essas engenharias que implicam comunicação e mentes; e nem a moçada jovenzinha é. Talvez muito menos eles.
Questões postas nos documentários e que podem nos provocar:
Se virmos sempre as mesmas coisas, aquelas com as quais concordamos, o que será do senso crítico entre as novas gerações?
Quando é que uma imagem deve ser censurada e por quê?
Que relação isso tem com cultura (local) e com importância histórica?
Quando é que os usos de redes tornam-se vício?
Quanto das polarizações políticas é de responsabilidade das redes sociais/empresas de tecnologia?
Como podemos reagir a isso, lendo e produzindo conteúdos?
Há como reagir dentro das próprias redes, desenredando-nos e enredando-as?
Sair das redes nos causa alheamento ou protege?
Quem sai de fato ajuda numa possível nova configuração do mundo? Ou apenas abandona a trincheira? É uma guerra?
Não, não pretendo fazer uma grande e profunda análise desses documentários. Minhas impressões é que insistiram em sair por aqui, a provocar, quem sabe, uma boa conversa, implicada nos letramentos digitais e na educação de todo dia.